Friday, January 26, 2007

não entres tão depressa nessa noite escura

Como quem apanha uma doença, pediste-me em tempos. E eu tinha acabado de ler o teu Esplendor, e sim, doente tinha ficado, prostrado pela realidade nua dos novos amigos que me tinhas trazido. Tinha-te acompanhado as inquietações já desde os meus dezoito anos, entrando na tua noite escura antes ainda de se fazer dia na minha caminhada.
Entretanto, à medida que me ias apresentando a tua gente em cenários de inferno, tudo me foi acontecendo. Hospitais, guerra, as casas de benfica, a casa da irmã do meu avô
(do teu?)
em Campo de Ourique, numa rua onde as janelas anunciavam o fim com quadradinhos brancos de papel. Enquanto isso, conheci os infinitos, os possíveis e os impossíveis. Aprendi a inércia, o amor, e a ausência. Deixei que os nossos amigos da arte efémera me falassem de mim através dos séculos na geometria dos sons. E tu descobriste, para além das tuas preocupações estilísticas com o trabalhar do tempo, que o segredo do eco da tua voz na minha cabeça estava mesmo no jogo de sons. E foi com gosto que te vi jogar contraponto a três vozes como uma invenção do mestre. Mesmo muito antes, quando tacteavas ainda o escuro da tua memória futura, já sem querer puseste os danados em cenas estanques marcadas a compasso
(lembras-te?)
por um bombo invisível da orquestra por formar. Mas o que mais gosto nesta tua gente é mesmo o que eles me mostraram de humanidade na sua mais pura banalidade. As marquises de Odivelas vistas de dentro ao pé da máquina de lavar, ou o elevador do prédio de Almada envolto em bruma de timidez social. O passar dos dias como visto pelos olhos de quem nunca vira qualquer luz nem forças tinha para sequer o vir a sonhar.
E nós, porque crescemos em terreno lavrado pelas ideias,
(disfarçado de altanaria)
perdemo-nos nos sons, nas letras, nas impressões, por esta hora sabendo já que o melhor que podemos ter é a surpresa desta mão invisível que nos é dada sem esperança, pensando que estamos sós quando descobrimos que a noite começa a cair.
Larguei-te logo depois de me levantar e caminhar, ou se calhar foi ao contrário, e foi essa febre que me fez querer viver. E agora é tempo de voltar a ti.
Como quem apanha uma doença.